Por Raphael Di Cunto e Beatriz Olivon

Tipo de empresa mais utilizado no país, a sociedade limitada deve passar por mudanças substanciais com a votação da Medida Provisória no 881/2019 (MP da Liberdade Econômica). O texto aprovado na comissão mista do Congresso autoriza o uso de novos instrumentos para a busca de investidores e recursos, como emissão de títulos de dívida (debêntures), e acaba com a necessidade de sócios “fictícios” para sua existência.

O relator da MP, deputado Jerônimo Goergen (PP-RS), sugeriu duas mudanças no Código Civil para as limitadas terem direitos hoje exclusivos das sociedades anônimas: permissão para cotas diferenciadas de capital social (uma com direito a voto na gestão e outra com prioridade nos lucros, por exemplo) e para lançamento de debêntures. Com a previsão, o número de empresas com acesso a esses instrumentos deve aumentar muito. Há hoje, segundo a Receita Federal, 3,5 milhões de limitadas ativas no país, frente a 1.040 sociedades anônimas.

A MP também permite que existam sociedades limitadas com apenas um sócio (unipessoais) de forma mais simplificada e segura para o empreendedor. A medida acaba com a necessidade de duas ou mais pessoas para criar uma empresa, o que tem levado a sócios “fictícios”, com participação ínfima no capital e alheios à gestão, muitas vezes parentes do real dono (leia abaixo).

As propostas são vistas como um avanço pelo setor empresarial. “Elas rompem uma série de barreiras a respeito da limitada e que já vinham sendo discutidos ao longo do tempo no projeto de lei do novo Código Comercial”, diz o assessor jurídico da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo de São Paulo (FecomercioSP), Fábio Cortezzi. “Se bem usadas, serão um trampolim para as sociedades limitadas e para a economia.”

As alterações não trazem institutos inéditos, mas práticas que, por falta de previsão legal ou de segurança jurídica, não eram utilizadas pelas empresas, segundo o advogado Thiago Spercel, sócio do escritório Machado Meyer Advogados. “O projeto alinha a prática de organização social brasileira a do mundo todo”, afirma.

O texto estabelece a possibilidade de emissão de debêntures e de diferentes classes de cotas no capital das limitadas. A Lei das Sociedades Anônimas (no 6.404, de 1976) permite a emissão de debêntures, mas havia dúvida se a medida poderia ser usada pelas limitadas porque não há previsão no Código Civil, que regula esse tipo de sociedade.

De acordo com Spercel, as principais juntas comerciais não permitem o registro de debêntures e, diante dessa resistência, as empresas hoje acham mais fácil se transformarem em sociedades anônimas para fazer a emissão, o que traz custos adicionais – com publicação de balanços e atas de assembleia, por exemplo.

Cortezzi, da FecomercioSP, ressalta que a debênture, um título de divida emitido como garantia de um empréstimo, é uma excelente forma de captar recursos no mercado e alternativa aos empréstimos bancários, mas que a MP só está autorizando oferta privada. “Sem a oferta pública, elas devem sofrer certa restrição que diminuirá bastante o seu uso”, diz.

Ocorreram também ressalvas do próprio Executivo durante a elaboração da medida. Na justificativa da MP, o governo defende que o melhor é permitir que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) simplifique os critérios para que as pequenas e médias empresas se tornem sociedades anônimas do que autorizar a emissão pelas limitadas, que não têm “diversas características necessárias ao bom funcionamento das debêntures, como, por exemplo, um regime informacional adequado ao acompanhamento dos investimentos”.

Goergen, porém, afirma que os dispositivos foram incluídos em acerto com a equipe econômica do governo porque as empresas “estão com problemas para se financiar por causa da crise” e as debêntures serão uma “maneira de arrecadar capital no mercado sem ter que depender de ações governamentais”.

Para o vice-presidente da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), José Eduardo Laloni, a limitada interessada em lançar debêntures com sucesso precisará ser transparente com sua situação financeira, o que já tem ocorrido para atender clientes e investidores. “Mesmo as empresas que não tem obrigação de divulgar seus números já têm feito isso”, diz.

Ele vê a abertura como positiva e lembra que o mercado de capitais está em ótimo momento devido à redução da taxa básica de juros da economia, a Selic, o que torna menos rentáveis investimentos em renda fixa e aumenta a busca por alternativas.

Já a criação de diferentes classes de cotas pode facilitar a gestão da empresa, opinam especialistas. Isso permite que um dos sócios tenha cotas para votar em alguns assuntos e outro em outros ou que um não tenha direito a opinar na gestão, mas, em contrapartida, receba dividendos maiores, por exemplo. “Com previsão expressa em lei pode ser que os empresários passem a usar com mais frequência as inovações trazidas”, diz Spercel.

Hoje as limitadas podem apenas fazer ajustes na distribuição dos lucros entre os cotistas e, com a mudança, poderiam se assemelhar à gestão das sociedades anônimas se assim quiserem, inclusive para atrair investidores. “Se eu quiser investir numa limitada hoje ou compro parcela do capital e fico sujeito a todos os riscos, ou empresto dinheiro e faço contrato de mútuo, que eu não consigo circular depois. Isso abre uma nova possibilidade de investimentos”, afirma Cortezzi.